Cora - Epílogo

A Fuga da Casa Abandonada


O casarão fora construído há muito tempo. O mesmo tempo que se esqueceu do perigo e descartou a fé com palavras de zombaria. A construção era rodeada de árvores, suas folhas farfalhavam com o leve empurrar da brisa e batiam nas paredes da mansão. As janelas observavam dois adolescentes, um menino e uma menina, conversando. Elas pareciam escarnecer a coragem dos ignorantes.
— Vamos, Eleanor — dizia o garoto. Ele estava encostado no carro com os braços cruzados. O sorriso era provocante, os olhos dele eram castanhos como a terra, o nariz, reto — Nós não viemos até aqui para você desistir.
— Não farei isso — murmurou a garota em resposta. Seus cabelos negros como o ébano desciam em ondas até as costas, os lábios vermelhos eram o autorretrato da rebeldia e os olhos violetas brilhavam, refletindo à luz do pingente de madeira opalizada que pendia de seu pescoço.
— Você está com medo? — perguntou o garoto, seu irmão Miguel. Suas costas enrijeceram. Aquelas palavras. Aquelas malditas palavras eram as únicas capazes de convencê-la e Miguel sabia disso. O desafio e a chance de vencer a cativavam como o som doce da música do Flautista de Hamelin. Ela bufou.
— Está bem, Miguel, entrarei no casarão — Ela se adiantou, deixando-o para trás. Sentiu sua nuca se arrepiar quando envolveu a mão na maçaneta da porta, um mau pressentimento envolvendo seu coração com asas negras. Ela hesitou, olhando por trás do ombro, mas entrou mesmo assim.
O corredor era escuro. A poeira se acumulava no chão e nos móveis e dançava no ar, como pequenas bailarinas. Eleanor tossiu, andando até a porta mais próxima, à sua direita, que a levou até a cozinha, com azulejos brancos, encardidos pelo tempo. À frente, encostada precariamente à parede, estava uma escada e na parede esquerda, uma abertura guiava até a sala.
Eleanor caminhou até a sala. Os sofás eram de um marrom escuro e aveludado, estavam um de frente para o outro, sendo separados por um curto espaço; no canto direito, jazia um piano de calda de carvalho. No centro, de frente para ela, havia uma pequena lareira de pedras cinza e, acima dela, um quadro. Da pintura, seu próprio rosto a encarava com olhos assombrados.

Christopher observava sua convidada, em choque. Ela estava exatamente como a vira pela última vez, tão bonita quanto no dia em que fugiu, mas havia algo diferente em seu olhar, um fogo que ardia, brilhante e poderoso. Ele andou ao redor da menina, absorvendo cada detalhe que podia agora que ela estava parada. Quando viu o pingente, teve certeza de que era Cora. Seu coração se aqueceu quando os olhos violetas pingados de estrelas se voltaram inexplicavelmente para ele. Até viva ela podia sentir o amor de sua vida, pensou com sarcasmo, tentando desesperadamente fazer com que o calor em seu peito se dissipasse, ele não podia amá-la depois de tantos anos. Em uma parte distante de sua mente, o instinto de protegê-la despertou quando ele sentiu a presença de Deirdre pela casa. Ela não iria gostar de ver Cora ali.

Um calor misterioso tomou conta do corpo de Eleanor, despertando-a do transe em que estava, encarando o quadro. Ela olhou ao redor, mas não viu nada. Uma nota de piano soou no silêncio estéreo. O frio voltou a invadi-la enquanto ela girava lentamente em direção ao instrumento. Ele dedilhava as teclas com precisão, seus dedos longos dançavam nas teclas formando uma canção que a aterrorizou e a preencheu de uma emoção desconhecida. Seus cabelos negros caíam em ondas, os longos fios prendiam em seus cílios finos e longos, que emolduravam seus olhos azuis como o mar Egeu. A boca se curvava em um sorriso rebelde e sarcástico, atraindo os desavisados para o pecado. Ela se sentiu caminhar em direção a ele, mas suas pernas não obedeciam aos seus comandos. Eleanor parou ao lado do garoto, e disse:
— Quem é você? — A voz dele, enquanto respondia era profunda e ressonante, a boca desenhando as palavras cuidadosamente:
— Esse não é a pergunta que você deveria fazer — Por alguns segundos, ela o encarou, confusa, mas sua mente, perdida em um turbilhão de emoções, lembrou do que deveria ser dito:
— O que pode ser mais bonito que as asas do anjos? — Ele sorriu, fazendo o coração de Eleanor acelerar, mas um barulho soou, do outro lado da casa quando ela acabou de falar, como se evocado pela frase. Era um grito rascante e torturado de uma mulher com o coração partido. O garoto não deu tempo para que Eleanor pensasse no significado daquela frase: começou a puxá-la para a porta
— Você precisa sair daqui agora, Cora!
— Por quê? — perguntou, apesar de seus instintos estarem gritando para que ela corresse — O que foi isso?
— Quem! — corrigiu uma voz rouca e onipresente, e a casa começou a tremer e Eleanor pôde ouvir os passos rápidos e pesados de alguém que corria.
O garoto a puxou com mais urgência e, dessa vez, apanhada de surpresa, ela cedeu e deixou que ele a guiasse. Os passos ficavam cada vez mais próximos, cada vez mais altos, os candelabros dourados, esculpidos com esmero se acendiam como mágica. Dentro das paredes, os guinchos de animais pequenos podiam ser ouvidos com clareza. Chegaram à porta e encontraram-na fechada e trancada.
— Droga! — amaldiçoou o garoto. Ele forçou a maçaneta, mas ela não cedeu. Tentou arrombar a porta. Em vão. Os passos ficavam cada vez mais perto de onde os dois estavam. Ele, por fim, implorou — Deirdre, deixe-a sair.
— Por que eu deixaria? — a voz soou novamente, alta e clara. Do alto da escada, a forma embaçada de um esqueleto humano começava a surgir do meio de uma espeça névoa negra — Ela é a culpada pelo nosso sofrimento, Chris, querido. Não me diga que se apaixonou por ela de novo.
— Deixe que ela saia e discutiremos isso — ele respondeu entre dentes.
 Eleanor não conseguia para de encarar a figura que agora se tornava cada vez mais nítida e real. A mulher a encarava com cavidades ocas, de onde saiam insetos minúsculos, os ossos apareciam em espaços entre a carne putrefata e o tecido rasgado, manchado de sangue espesso e rubro. A mulher moveu a sua atenção para ela.
— Gosta do que vê, Cora? — pergunta com malícia. Um brilho maníaco talvez surja no vazio onde deveria haver seus olhos — A culpa disso é sua.
— Por que ficam me chamando de Cora? Meu nome é Eleanor.
— Não minta para mim! — gritou a criatura do alto da escada, alto o suficiente para fazer seus ouvidos doerem. Ela desceu das escadas devagar, como se saboreando cada momento do terror de Eleanor. As botas que ela usava batiam na madeira, produzindo um som oco e vazio. O homem Christopher, andou até ela quando chegou ao primeiro andar.
— Deirdre... — começou com a falar a voz hesitante, cada passo em direção à escada era lento e cuidadoso. Mas a mulher não queria ouvir, ela tinha sua atenção em Eleanor.
— Sabe o que eu vou fazer com você, minha querida Cora? — o eco da memória de um antigo apelido ressonou na mente de Eleanor. Ela sentiu seu corpo se arrepiar com a aproximação da mulher, que passou por um Christopher resignado. A carne podre dos dedos da mulher roçou sua bochecha e ela recuou, batendo na porta — eu vou pegou cada músculo de seu corpo e dilacerar, vou quebrar cada um de seus ossos, abrir milhares de feridas em sua pele e esfrega-la em sal até que seu lindo rosto não tenha mais nada de belo a não ser os seus irritantes olhos da cor da mais linda turmalina, e depois vou arrancá-los, impedi-la de ver qualquer beleza existente no mundo, vou deixa-la na escuridão em que você me deixou duzentos anos atrás, sem nenhuma esperança. Mas antes de enlouquecê-la com tanta dor, vou fazê-la observar enquanto todos que você ama sofrem a mesma coisa nas minhas mãos. Você ouvirá os gritos de desesperança e não conseguirá tocá-los, mesmo estando tão perto de você. Eu vou fazer com que você me implore para morrer e vou te assombrar depois de sua morte também, para sempre.
Eleanor chorava, as lágrimas cristalinas desciam por sua face, brilhando enquanto tocavam o pingente flamejante. O homem apareceu ao lado das duas em um instante, segurando a mão da mulher, interrompendo suas palavras com um olhar furioso e ameaçador.
— Você não fará isso com ela — a mulher desdenhou da coragem do homem:
— E você vai me impedir Christopher? — o homem sorriu de lado e respondeu com superioridade:
— Não.
— Eu vou — falou Eleanor, batendo com o candelabro no crânio branco e liso da criatura. Ela ouvir o barulho do osso se quebrando, mas não ficou para saber o resultado. Deu meia volta e correu de volta para a sala, com Christopher seguindo-a de perto. Abaixou a tampa do piano, que fez um barulho desafinado, mas não ocultou o berro de raiva que veio do corredor e subiu em cima, alcançando a janela. Abriu-a. O barulho dos passos começou a soar novamente, cada vez mais perto. Cada vez mais perto. Cada vez mais alto. Ela se virou para o garoto — Venha comigo.
Ele sorriu tristemente. Passou a mão pela bochecha dela. Ele era quente e Eleanor se inclinou para aquele calor, sentindo o contraste de sua pele fria na dele, quente.
— Não posso, tenho que ficar. Sou o único capaz de conter Deirdre aqui.
— Ela irá te machucar? — perguntou, sentindo seu peito se apertar com a resposta do garoto. Não queria ir embora sem ele. A névoa apareceu de novo na porta da sala e a mão da mulher que a ameaçou segurou o batente, como se ela estivesse se erguendo lentamente. Christopher olhou para ela com alarme
— Vá — disse, e beijou sua testa. Antes de Eleanor se virar para sair do casarão ele segurou seu braço — O meu amor por você.
Eleanor saiu da casa, ouvindo os ecos de uma luta acirrada na sala. Ela correu até o carro, tremendo e entrou. Seu irmão esperava por ela, alheio ao que acabara de acontecer. Ele apenas correu com o carro em alta velocidade quando ela ordenou que o fizesse. E não fez perguntas. Longe do casarão, ela conseguiu pensar melhor na frase que Christopher dissera e as entendeu: era a resposta para sua pergunta.

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